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O racismo e o inconsciente: O que eu tenho a ver com isso? 

É importante mencionar que os impactos psicológicos advindos do preconceito racial são imensuráveis, não passíveis de serem traduzidos e expressados somente em palavras


25 de novembro de 2022 por
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Psicóloga Bianca B. Pan Lopez (CRP 12/22421), graduanda em Psicanálise e Angelo Nascimento Carrasco, graduando em Licenciatura em História.  

Há 33 anos atrás, era sancionada a Lei de nº 7.716, colocando como crime as discriminações ou preconceitos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, de modo que o racismo passou a ser criminalizado e punido. Em 1995, o DataFolha publicou no jornal A Folha de São Paulo (Munanga, 2017), uma pesquisa que registrou a negação no discurso estrutural racista de brasileiros. Se quase noventa por cento dos respondentes aceitavam a existência do racismo no país (89%), apenas dez por cento (10%) confessaram terem, eles próprios, discriminado, mas em perguntas indiretas foram manifestamente racistas (87%).¹ Frequentemente se fala sobre o racismo como sendo estrutural, velado, silencioso, fruto de pequenos atos difíceis de serem caracterizados pela lei para punição. Mas você já parou para pensar em como essa estrutura se formou? Mais ainda, já pensou em como nosso inconsciente lida com essas questões? É necessário estabelecer um brevíssimo histórico a respeito do tema para melhor compreensão. 

Ainda no século XV, os europeus haviam descoberto que uma das maiores fontes de riqueza estaria no tráfico escravista, tráfico este que até então não era relacionado as condições raciais, pois os africanos vendiam seus pares. Com a noção clara dos lucros, os portugueses do século seguinte estabeleceram com os comerciantes locais um grande acordo comercial de tráfico de escravizados: o Brasil passaria a ser a casa que abrigaria mais de 4 milhões de pessoas na condição de escravizados. Embora a escravidão já existisse em África desde o século VII com a invasão dos muçulmanos árabes, os cristãos portugueses tinham uma particularidade, eles viam o escravizado como “propriedade pessoal”.  

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É evidente que houve resistência por parte dos escravizados, desde atos combativos e conflituosos, até ações mais sutis e silenciosas. Mesmo em África já haviam criado a organização política, econômica e social dos Kilombos (aportuguesado “Quilombo”), que era o local onde combatiam o domínio e a expansão colonial. No Brasil os quilombos também expressaram resistência ao sistema escravista do colonizador: o líder Zumbi, do Quilombo dos Palmares fora o grande ícone dessa manifestação, homenageado com o dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), o dia de sua morte.  

Já entendemos que o comércio de escravizados era uma prática lucrativa para os europeus, entretanto o que sustentava essa perversidade racial na mentalidade cristã da época? Precisamos remontar à Bíblia. Depois que passara o dilúvio, Noé veio a ser um lavrador de terras, junto aos seus três filhos: Sem, Cam e Jafé. Assim que colheu as primeiras uvas de sua vinha, preparou e tomou vinho em comemoração, embriagando-se e ficando nu em sua tenda. Vendo a situação do pai, Cam ri e chama seus irmãos Sem e Jafé, que com os rostos virados cobrem a nudez do pai. No dia seguinte, ao saber do que houve e de como o filho riu de sua nudez, Noé amaldiçoa Cam e toda a sua geração, profetizando que seus filhos seriam servos de Sem e Jafé. Assim, a mentalidade religiosa do século XVI concebia os africanos como filhos de Cam, e sua cor de pele escura representava a maldição imposta por Noé, justificando a escravização desse povo.  

Além da maldição de Cam, o final do século XIX promoveu uma série de teorias racistas entre cientistas e instituições. Esses discursos queriam provar, em um país já marcado pelo cruzamento de várias etnias diferentes, que os brancos eram superiores às demais “raças” de nossa espécie. Depois da abolição da escravatura em 1888, o quadro “A Redenção de Cam” (1895) torna clara a tentativa do pós-abolição de trazer imigrantes europeus para o Brasil: era necessário embranquecer a população brasileira. É aqui que o racismo ganha corpo e significado, em que se estrutura a ideia de superioridade em relação ao preto, africano, indígena ou amarelo, que se arrasta até os nossos dias e permeia nosso inconsciente.  

As teorias raciais do século XIX foram descartadas e o racismo tornou-se crime no Brasil em 1989, porém, isso significa que o preconceito racial acabou? Recentemente o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou uma pesquisa provando que a renda média do trabalhador branco é até 75% maior que de pretos, até quando estes conseguem estudar mais. O chocante dado nos mostra como funciona essa estrutura do racismo em nossa sociedade. A marginalização da população preta em favelas, os crescentes números da violência policial em relação aos negros e a precarização dos trabalhos destinados à classe empobrecida (majoritariamente preta e parda) são indicativos da estrutura de preconceito histórico que analisamos: ainda enxergamos o preto como inferior. 

As sequelas sofridas pela escravidão e o descaso político e social para com a população negra nos apontam que não é uma condição aleatória o racismo contra o negro no Brasil, mas o modo como se constituiu a noção de cores de pele e raça, por meio do fruto econômico, político, estético e discursivo, o quais foram atravessados por condicionalidades históricas, sociais, econômicas e de cultura nacional.¹ 

Pois bem, agora que já entendemos um pouco sobre as condições históricas do racismo e como este se estrutura na sociedade sustentada pelas instituições, para além disso, precisamos pensar na dimensão simbólica e imaginária da inferiorização da população e pessoa preta, nas relações interpessoais e na ideologia racista.¹   

O ministro da Velha república, Rui Barbosa, (1889-1930) mandou que todos os arquivos acerca da escravidão no Brasil fossem queimados, apagados, para que os crimes abonáveis que foram feitos em seu nome fossem esquecidos. Nesse sentido, em uma conversa entre história e psicanálise, sabe-se que os traumas em geral não se superam através do esquecimento ou negação, mas com as palavras, o diálogo e a lembrança, favorecendo as possibilidades de ressignificações, novas representações e enfretamento, a elaboração e reelaboração do trauma.¹ Ou seja, ao invés de apagar e silenciar, deixando lacunas a serem preenchidas de maneira equivocada, você entende a importância de trazermos a memória esses marcos cruéis que aconteceram no passado e se tomam por ocasião na atualidade, dialogando para buscarmos novas alternativas de enfrentamento?  

No nosso inconsciente, isto é, aquilo que carregamos sem termos consciência de nossos movimentos e dinâmicas psíquicas,  a estrutura racista se sustenta em três dimensões: a) através do esquecimento, que ocorre quando uma situação se torna insuportável para a aceitação do sujeito, logo, os fatos da realidade são retirados ou nem chegam alcançar o consciente das pessoas (a pessoa não consegue se perceber enquanto alguém que tem pensamentos e comportamentos racistas); b) desmentido, em que a pessoa ao mesmo tempo que reconhece, nega a existência de suas representações racistas, e assim, essa representação reaparece de maneiras sutis e não tão explicitas (como no caso da pesquisa apresentada no início do texto); c) rejeição, exclui a representação racista como se a situação traumática jamais tivesse existido (nega a existência do racismo). Vale lembrar que é necessário que o fato seja negado para ganhar a existência e força simbólica.

Para melhorar a compreensão, o simbólico pode ser entendido como a capacidade humana de significar e utilizar as palavras. Portanto, antes de falarmos sobre nós mesmos, nós somos falados por outra pessoa, aquela que escolheu nosso nome, nos idealizou e buscou significados na nossa existência. A partir disso, vamos criando os conceitos e palavras para expressarem nossos pensamentos e compreensões, fazendo com que criemos noções e representações, como a noção da figura paterna e materna, papeis de gênero, das profissões, de tudo. Assumir a fala é assumir nosso modo de falar, é assumir que aquilo que consideramos tão afastado de nós, na verdade nos constitui². Isso significa que nossas noções e representações podem e precisam ser questionadas, para que assim consigamos bater de frente e na raiz do racismo que nos constitui e está em alguma instância historicamente construído e enraizado em nós. 

É importante mencionar que os impactos psicológicos advindos do preconceito racial são imensuráveis, não passíveis de serem traduzidos e expressados somente em palavras. Porém, como forma resumida, podemos destacar alguns atravessamentos. Com base na auto-observação, consciência moral e censura, o corpo negro, oprimido, pode acabar no campo simbólico criando um ideal de Eu branco, à vista de que as representações sociais que acabam por conversarem com as representações subjetivas da pessoa, coloca o homem branco como o aceitável, bonito e bem sucedido, dando lugar até mesmo para que o negro se identifique com o seu agressor (o branco). Outros fatores é que na construção do Eu do sujeito acaba sendo permeada pela inferioridade, culpa, censura, autorrestrição, desumanização e a negação de seu próprio corpo.  

Como forma de exemplificar, vamos pensar no fato de um do sujeito negro não chegar nas posições de poder exercidas majoritariamente pela população branca. Como o racismo não é explicito, é como se a culpa e responsabilidade fosse do sujeito negro por não ter estudado, se dedicado ou se esforçado mais, como se a cor de sua pele não interferisse nos resultados. Entretanto, nota-se que o sujeito negro por diversas vezes está colocado às margens da sociedade, sofrendo exclusões e, consequentemente, desfavorecido de diversas oportunidades e acessos que são mais facilmente alcançadas por pessoas brancas, como tendo suas necessidades básicas suprimidas (fome, segurança, moradia, saneamento básico, lazer, etc), a educação, saúde e transporte de qualidade, entre outros diversos elementos.¹ 

Por fim, podemos considerar como caminhos de encontro para a igualdade racial o resgate mais fiel do passado em relação ao racismo, abrir espaços de eventos e movimentos que tenham por objetivo o diálogo, para que através da informação possamos proporcionar maior conscientização sobre o racismo, nos autoperceber e responsabilizar, assumindo nossa posição de herdeiros, participativos e reprodutores dos movimentos passados dentro dessa estrutura racista. Portanto, por meio da autorreflexão e questionamentos, consigamos ressignificar e transformar nossas representações de poder, beleza, estética, linguagem, moda, cultura, religião, etc, que anulam ou excluem a pessoa e povo negro para outras que as validem enquanto belas, inteligentes, capazes e culturalmente ricas, iguais.    

Referências Bibliográficas 

²AMBRA, Pedro. O lugar e a fala: a psicanálise contra o racismo em Lélia Gonzalez. Sig-Revista de Psicanálise. Ano, v. 8, p. 85-101, 2019. 

BRASIL. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 7.716, de 5 de Janeiro de 1985. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Brasília, 5 de janeiro de 1989. 

CAVALLINI, Marta. Proporção de pretos e pardos entre os pobres chega ao dobro em relação aos brancos, mostra o IBGE. G1, 11 de novembro de 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/11/11/proporcao-de-pobres-pretos-e-pardos-chega-ao-dobro-em-relacao-aos-brancos-mostra-o-ibge.ghtml> acesso em: 23 de novembro de 2022. 

¹GUERRA, Andréa Máris Campos. O papel da psicanálise na desconstrução do racismo à brasileira. Revista Subjetividades, v. 20, p. online: 28/11/2020-online: 28/11/2020, 2020. 

IBGE: renda média de trabalhador branco é 75,7% maior que de pretos. Carta Capital. Agência Brasil, 11 de novembro de 2022. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/ibge-renda-media-de-trabalhador-branco-e-757-maior-que-de-pretos/ > acesso em: 23 de novembro de 2022. 

NASCIMENTO, Beatriz; RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa oficial, 2006. 

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 99-133, 1993. 

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